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Como o modernismo brasileiro apropriou-se da cultura indígena

Atualmente, artistas de origem indígena impõem-se no circuito institucional da arte contemporânea com cada vez mais força e diversidade, contudo, nem sempre foi assim. Um dos eventos mais relevantes da História da Arte brasileira, a Semana de Arte Moderna de 1922, foi marcada por uma profusão de referências à cultura autóctone como um dos traços essenciais da brasilidade, mas, por outro lado, também pela ausência de representantes dessa identidade. 

Nesse sentido, o centenário da Semana de 22, celebrado no ano passado, pode ser pensado também como marco temporal da evolução da agência de artistas de origem indígena: partindo de uma situação de apropriação e referências indiretas em 1922, para outra, em 2023, marcada pela presença nas principais coleções do país, pela produção de pensamento crítico, e pela participação em várias exposições e eventos culturais.

Neste texto, pretendemos apresentar os primórdios dessa trajetória, destacando a contribuição do pensamento indígena ao Movimento Antropofágico e ao modernismo brasileiro. 

“O momento alto do Modernismo paulista é totalmente impensável sem as referências indígenas, sem a percepção – para usar uma frase do Manifesto Antropófago – de que ‘já tínhamos a língua surrealista’; o Modernismo é impensável sem a percepção de que as formas modernas estavam, por assim dizer, ‘aqui’.“ – Alexandre Nodari, professor do Departamento de Literatura e Linguística e dos Programas de Pós-Graduação em Letras e Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

 

Quando Oswald de Andrade afirma em seu Manifesto Antropófago (1928) “Tupy or not tupy, that is the question”, vemos a síntese de sua proposta para a criação de uma cultura brasileira original e autêntica que parte da ideia de antropofagia derivada da cultura Tupi – referência ao tronco linguístico dos povos originários que, à época da colonização, habitavam o litoral. Oswald e os demais pensadores do movimento, como Raul Bopp e Antônio de Alcântara Machado, propunham a reprodução da prática de canibalismo ritual, a antropofagia, como referência para o movimento de “devoração” e assimilação da cultura europeia pelos artistas brasileiros. 

Ainda em 1928, foi lançada “Macunaíma”, obra de Mário de Andrade considerada fundamental do modernismo brasileiro e um dos marcos da literatura nacional. A história é uma alegoria que faz uma crítica à sociedade brasileira da época, retratando a falta de caráter e os vícios da elite brasileira, a miscigenação e a luta de classes. A narrativa apropriou-se de mitos taurepang e arekuna sobre Makunaimî, transcritos pelo antropólogo alemão Theodor Koch-Grünberg a partir dos relatos de Mayuluaípu e Akuli. 

Com o objetivo de refletir sobre essa dicotomia da ausência/presença indígena na Semana de 22, foram lançados durante seu centenário uma série de exposições, livros e debates que pensam o evento sob a perspectiva decolonial. Isso porque a apropriação das ideias e estéticas afro-indígenas pela vanguarda moderna gerou o posterior silenciamento das mesmas. Nesse sentido, a “Re-antropofagia” sinaliza a necessidade de reapropriação para a reparação dessa marginalização histórica. 

Esse objetivo ganhou maior destaque em 2019, quando foi inaugurado no Centro de Artes da UFF a exposição “ReAntropofagia”, curada por Denilson Baniwa. O título foi tirado de um trabalho do artista (abaixo), no qual vemos a oferta da cabeça de Mário de Andrade em um cesto de palha junto a um exemplar do livro. Ao lado, encontra-se um bilhete onde é registrado “Aqui jaz o simulacro Macunaíma, jazem juntos a ideia de povo brasileiro e a antropofagia temperada com bordeaux e pax mongólica. Que desta longa digestão renasça Makunaimî e a antropofagia originária que pertence a nós, indígenas”.”. 

“ReAntropofagia”, 2019, de Denilson Baniwa. Na obra, o artista “serve” Mário de Andrade no gesto antropofágico.

 

Segundo o artista, “O trabalho em si é uma crítica ao Modernismo, mas muito mais que uma crítica ele é uma oferenda, para que os artistas indígenas possam devorar, possam se servir. É como se eu juntasse o repertório modernista e entregasse aos indígenas para que comam e desenvolvam sua arte. É sobre antropofagia após tantos anos de colonização e sequestro da arte e cultura indígenas”, explica Baniwa.

Após décadas de monumentalização das vanguardas modernas no Brasil, o centenário foi tomado como uma oportunidade de realizar uma leitura crítica daquele momento, o que os artistas afro-indígenas souberam aproveitar. 

Para citar algumas das ações, o Itaú Cultural lançou uma série de entrevistas a partir de questionamentos como: O que seria essa semana de oposição ao conservadorismo na arte se ela ocorresse atualmente? Seria mais plural, menos centralizada, mais inclusiva? Quem estaria na “turma” dessas pessoas se a Semana de arte moderna acontecesse hoje?. Já a Pinacoteca de São Paulo lançou o programa “1922: modernismos em debate”, uma série de encontros e conversas que incitam releituras do grande paradigma da arte brasileira. O MAM-Rio inaugurou “Nakoada”, exposição com curadoria de Denilson Baniwa e Beatriz Lemos cuja proposta central era uma “contra-antropofagia” que é crítica aos discursos de legitimação e centralidade de um ideal modernista no país. 

Os cem anos que separam a Semana de 22 e seu centenário são limitados por situações muito distintas em relação à participação indígena na arte brasileira. As ações ocorridas nos últimos anos demonstraram a necessidade de seu questionamento, apropriação e discussão pública na medida em que, se por um lado representou importantes inovações estéticas e de pensamento sobre a cultura e a arte, também reproduziu vários dos problemas estruturais do meio em que surgiu, como o racismo e o classicismo de seus representantes. 

 

Para mergulhar na discussão: 

 

Entre os livros lançados por ocasião da Semana de 22, dois se destacam pela proposta revisionista de cunho decolonial. A obra Modernismo em preto e branco: arte e imagem, raça e identidade no brasil, 1890-1945 (Cia das Letras), de Rafael Cardoso, questiona a associação do modernismo a um seleto grupo paulistano e reinvindica a modernidade de manifestações da cultura de massas, como a imprensa ilustrada, a publicidade, a música popular e até o Carnaval, especialmente, a partir do panorama da capital carioca. O livro apresenta uma pesquisa extremamente consistente e com um viés bastante inovador, iluminando pontos inusitados sobre o modernismo brasileiro, incluindo principalmente a questão racial. 

Já o livro Modernismos: 1922-2022, organizado por Gênese Andrade, traz 29 ensaios inéditos, com a participação de intelectuais como José Miguel Wisnik, Lilia Moritz Schwarcz, Renata Felinto e Walnice Nogueira Galvão, que contribuem com um amplo panorama de reflexões sobre a Semana de 22 e seus desdobramentos, revisitando suas memórias e fortuna crítica.

 

Leia mais

 

NODARI, A.; AMARAL, M. C. A. A questão (indígena) do Manifesto Antropófago. Revista Direito & Práxis, 2018, v. 9, n. 4, p. 2461-2502. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdp/a/nRTJWzK4pkWq8CMwG7Lqz7G/abstract/?lang=pt

SIMÕES, A. Reapropriar para reparar: o centenário da Semana de 22 sob a ótica decolonial. Revista Arte!Brasileiros, 12 de agosto de 2022. Disponível em: https://artebrasileiros.com.br/opiniao/centenario-da-semana-de-22-sob-a-otica-decolonial/

 

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