Na história da arte, a noção de originalidade sempre esteve ligada à ideia da obra única, irrepetível. No entanto, os múltiplos surgem como uma forma de desafiar esse conceito, oferecendo ao público obras produzidas em séries limitadas, assinadas e numeradas pelo artista — e, ainda assim, consideradas originais. Mais do que uma técnica, os múltiplos representam uma filosofia de acesso, circulação e expansão do pensamento artístico.
Definição: múltiplos, reproduções e obras únicas
De forma objetiva, múltiplos são obras de arte idênticas entre si, produzidas em uma tiragem restrita e controlada, com a chancela direta do artista. Ao contrário das reproduções comuns — que são impressões em massa, não assinadas nem numeradas — os múltiplos carregam o valor da autoria. Cada exemplar, mesmo sendo parte de um conjunto, é considerado uma obra original, pois foi criado dentro da proposta conceitual do autor, muitas vezes com sua assinatura, numeração e certificado de autenticidade.
Por isso, é fundamental distinguir:
- Múltiplos (edições limitadas): pequenas séries, assinadas e numeradas, com valor artístico autêntico.
- Reproduções ou edições abertas: cópias ilimitadas e impessoais, geralmente vendidas sem envolvimento direto do artista.
- Obra única: peça individual, não replicada, ainda vista como o ápice da exclusividade no mercado de arte.
Nesse cenário, os múltiplos não anulam a ideia de unicidade, mas tensionam seus limites, propondo novas formas de circulação e apropriação da obra.
Origem e desenvolvimento histórico
A produção seriada de imagens tem raízes antigas, especialmente nas técnicas tradicionais como a xilogravura, a gravura em metal e a litografia, que floresceram entre os séculos XV e XIX. Essas técnicas permitiam copiar imagens, mas o conceito de múltiplo artístico, como compreendemos hoje, ainda não existia.
Foi no século XX que a ideia tomou corpo. Marcel Duchamp, um dos precursores do pensamento contemporâneo em arte, criou entre 1935 e 1941 a famosa Boîte-en-valise, uma espécie de museu portátil com miniaturas de suas obras. Produzido em edições limitadas, esse projeto desafiava o culto à aura da obra única e anunciava um novo paradigma: o valor da obra não precisava estar preso à sua irrepetibilidade.
A partir da década de 1960, com os movimentos Pop Art e Fluxus, os múltiplos ganham protagonismo. Artistas como Andy Warhol, George Maciunas e Yoko Ono passaram a utilizar técnicas industriais — como a serigrafia — para criar obras em série. O objetivo não era só produzir mais, mas tornar a arte acessível, romper com as hierarquias do mercado e transformar o cotidiano em suporte artístico.

La Boîte-en-valise – Centre Pompidou
Democratização da arte e acesso ampliado
Ao possibilitar que uma obra de arte seja adquirida em mais de um exemplar original, os múltiplos contribuem diretamente para a democratização do colecionismo. Leilões e feiras especializadas, como o Leilão de Múltiplos, que eu organizo desde 2025, ou a IFPDA Print Fair em Nova York, abrem espaço para novos públicos e consolidam um mercado dinâmico, diverso e menos elitizado.
A acessibilidade econômica é um dos grandes trunfos dos múltiplos: como o custo de produção é dividido entre os exemplares da edição, o preço final tende a ser menor do que o de uma obra única do mesmo artista. Isso permite que jovens colecionadores, instituições e amantes da arte possam adquirir peças relevantes com investimentos mais baixos.
Além disso, ao manterem a integridade conceitual da obra e a assinatura do autor, os múltiplos preservam o valor simbólico e de mercado, sendo considerados investimentos legítimos. Eles ainda favorecem a entrada de artistas no circuito comercial sem comprometer sua produção principal, funcionando como uma ponte entre o ateliê e o público.

© Annie Forrest. Cortesia IFPDA.
Panorama contemporâneo: feiras, galerias e artistas
Nos últimos anos, o mercado de múltiplos tem se expandido de forma significativa. Galerias de grande porte, como Hauser & Wirth, David Zwirner e Pace Gallery, criaram braços específicos para edições limitadas — um sinal claro de valorização desse segmento. A edição de 2023 da IFPDA Print Fair, por exemplo, registrou recorde de público e expositores, confirmando o interesse crescente por obras gráficas de todas as épocas.
Entre os artistas, nomes consagrados e emergentes exploram essa linguagem. Banksy, com suas tiragens de serigrafias politicamente provocadoras, é um dos grandes exemplos. Suas obras atingem altos valores em leilões — ainda que, em alguns momentos, voltem a faixas mais acessíveis, o que torna esse mercado atrativo tanto para iniciantes quanto para investidores.
Por que colecionar múltiplos?
Além do fator econômico, colecionar múltiplos é uma forma de valorizar a difusão do pensamento artístico. Cada exemplar carrega a intenção do autor de atingir um público maior sem abrir mão da profundidade conceitual. Para muitos, é o primeiro passo em uma trajetória de colecionismo mais ampla — e, para outros, um caminho consciente de investir em arte de forma democrática.
Ao romper com o dogma da peça única, os múltiplos revelam um aspecto essencial da arte contemporânea: seu poder de comunicar, circular e incluir. São formatos híbridos — ao mesmo tempo acessíveis e conceitualmente potentes — que desafiam os limites entre o exclusivo e o coletivo. Seja como porta de entrada para novos colecionadores ou como estratégia crítica dentro da produção artística, os múltiplos ocupam hoje um lugar vital no ecossistema das artes visuais.
Em resumo:
- Os múltiplos ampliam o alcance da arte contemporânea;
- Preservam a autoria e o valor da obra original;
- São reconhecidos institucionalmente e comercialmente;
- Enriquecem coleções com peças assinadas, de tiragem limitada;
- Estimulam um mercado mais inclusivo, dinâmico e sustentável.