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A vez da arte popular brasileira: breve trajetória de sua institucionalização

Na próxima semana, nos dias 23 e 24 de maio, terei a oportunidade de apregoar um conjunto de peças de arte popular brasileira provenientes da coleção Amália Lucy Geisel. Dentre as peças, há grupos escultóricos em terracota, jarras produzidas por artesãos do Vale do Jequitinhonha e uma moringa do Mestre Ulisses, um dos maiores mestres ceramistas da região. 

 

A presença desses artigos no leilão ocorre de forma simultânea a um importante movimento do circuito das artes no Brasil em que percebemos a valorização da pesquisa e da exposição de arte popular. Falo de iniciativas como o projeto Arte nas Estações, de Fabio Szwarcwald, centrado na exposição itinerante de obras do acervo do Museu Internacional de Arte Naïf, ou da grande exposição dedicada a Chico da Silva organizada pela Pinacoteca de São Paulo. 

 

Nesse sentido, foi muito propícia a oportunidade de apresentar ao público itens da coleção Amália Geisel, uma intelectual que atuou em órgãos como o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular e escreveu ao longo de sua trajetória profissional uma série de artigos e livros sobre a arte popular brasileira. 

 

A arte popular é caracterizada especialmente como uma vertente crítica ou antagônica à arte acadêmica, esta baseada nos princípios clássicos de composição, harmonia e técnica. Por isso, está ligada à capacidade autodidata dos artistas, muitos dos quais são denominados “mestres” uma vez que dominam a artesania. A origem modesta e a ausência de uma formação profissional formal é, inclusive, um dos motivos pelos quais a arte popular ainda hoje é alvo de preconceito de certas parcelas da sociedade, que questionam até mesmo a definição dessa produção como arte. 

 

O universo da arte popular brasileira é imenso e diverso quando tratamos das temáticas representadas: geralmente relacionadas ao cotidiano dos artistas, festas populares e religiosas, costumes, tradições e aspectos fantásticos da cultura. As técnicas incluem a escultura em madeira, barro, papel machê e ferro que são transformados em carrancas, ex-votos, imagens religiosas e conjuntos escultóricos de cenas do dia-a-dia. Além das esculturas, destacam-se também  pinturas caracterizadas por composições altamente pessoais e originais, bordados, colagens, e variadas técnicas artesanais. 

Cerâmica do Vale do Jequitinhonha. Minas Gerais.

 

O estudo das expressões populares na arte brasileira ganhou força no início do século XX, quando intelectuais como Sílvio Romero buscaram encontrar as raízes “autênticas” ou “genuínas” da identidade nacional no folclore. Posteriormente, a Semana de 22 consolidou a reivindicação nacionalista através do popular.  A pesquisadora Angela Mascelani resumiu o caldo cultural daquele momento da seguinte forma:

 

“No Brasil, o culto  ao “primitivo” ganhou novas elaborações  durante  todo  este século,  em inúmeros  contextos diferentes. Gilberto Freire e sua teoria da mestiçagem (1926); o movimento modernista (1922); as campanhas folcloristas;  Getúlio Vargas e o populismo (1930), constituem momentos marcantes da elaboração interna desse conceito. Instrumentalizando a oposição entre a vida rural e urbana, a literatura elege o sertanejo, o caipira, o interiorano e suas variantes como os personagens  típicos do país. Representando o autêntico, o puro e o inocente, são eles os “novos primitivos”, vistos como  depositários das tradições, cerne da nacionalidade.” 

 

A inserção de artistas populares no mercado e no circuito expositivo das artes ocorreu de forma mais significativa, no Brasil, entre 1940 e 1980. Alguns marcos importantes foram, em meados da década de 1940, a criação da Unesco e a escolha da Comissão Nacional do Folclore como instituição representante do Brasil junto ao organismo internacional. A partir daí, o registro, coleta e sistematização das manifestações artísticas tradicionais e populares ganhou grande peso nas políticas de Estado.

 

O pós-guerra foi um período de grande transformação cultural no Brasil: irrompem novos conceitos para definir as linguagens artísticas e a própria arte a partir da entrada de inovadores correntes como o cubismo, o dadaísmo e o construtivismo. As fronteiras que antes separavam artesanato e arte tornaram-se menos rígidas. Neste momento, ocorreu um dos marcos da arte popular brasileira: a Exposição de Cerâmica Pernambucana organizada por Augusto Rodrigues, no Rio de Janeiro, em 1947, a qual revelou Mestre Vitalino para o sistema. 

 

Mestre Vitalino fotografado por Pierre Verger na década de 1940.

 

A partir da década de 1970 emergiu nas políticas de preservação do patrimônio cultural brasileiro uma nova perspectiva que enfatizava o seu valor simbólico, em especial na ideia de “referência cultural”. Posteriormente, em 1988, consta da Constituição a garantia à proteção das culturas populares. Desde esse momento, podemos afirmar que a arte e a cultura popular estiveram presentes na maioria das formulações das políticas governamentais para a cultura, recebendo subsídios para sua salvaguarda e promoção. 

 

Dentre as produções com maior notoriedade atualmente, estão os artesãos do Vale do Jequitinhonha, região no nordeste de Minas Gerais que é um dos mais relevantes pólos exportadores de artesanato no país. Destacam-se na escultura em cerâmica, na cestaria, na tecelagem, e nos instrumentos para música sacra.

 

Outra localidade de grande importância para a arte popular brasileira está no Rio de Janeiro. O Museu do Pontal abriga a coleção mais completa de arte popular do país, composta por mais de nove mil peças reunidas inicialmente pelo artista e designer francês Jacques Van de Beuque. 

 

Peça do Acervo do Museu do Pontal, RJ.

 

Esperamos que este breve artigo tenha contribuído para aumentar seu interesse pela arte popular brasileira! Como tentamos demonstrar, sua trajetória de legitimação institucional é longa e vive um momento bastante intenso. 

 

Para saber mais:

 

GOLDSTEIN, Ilana. Arte, artesanato e arte popular: fronteiras movediças. Bixiga em artes e ofícios, p. 223-257, 2014.

 

MASCELANI, Angela. A Casa do Pontal e suas coleções de arte popular brasileira. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 28, p. 121-155, 1999.

 

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