Brasiliana é um termo que se refere ao conjunto de obras e objetos relacionados à história, cultura e arte brasileiras, produzidos desde o período colonial até os dias atuais. É um conjunto diverso em formato, incluindo livros, manuscritos, mapas, pinturas, esculturas, fotografias, objetos de arte popular, e filmes, entre outras coleções. Essas coleções podem ser privadas ou institucionais, e brasileiras ou estrangeiras (as principais localizam-se na Alemanha, na França, na Rússia e nos EUA). No país, as coleções institucionais compostas por objetos de arte mais relevantes são a Brasiliana Fotográfica do instituto Moreira Salles em parceria com a Fundação Biblioteca Nacional, e a Brasiliana Iconográfica, uma parceria entre a FBN, o IMS, a Pinacoteca de São Paulo e o Itaú Cultural.
A Brasiliana tem um papel importante na construção e preservação da memória e identidade brasileiras, já que essas obras e objetos retratam aspectos da história, da cultura e da sociedade desde o período colonial, permitindo que possamos compreender melhor nosso passado. Além disso, a Brasiliana também é valorizada por sua importância artística e histórica, já que muitas dessas obras são consideradas tesouros culturais e patrimônios históricos e artísticos do Brasil.
Como vimos detalhadamente nos posts produzidos sobre os artistas viajantes, desde o século XVI, o território do que hoje se considera Brasil foi destino de dezena de expedições científicas e artísticas que tinham como objetivo coletar espécies animais, vegetais e minerais, registrar dados da paisagem e apresentar ao ocidente as particularidades do “Novo Mundo”: sua natureza, seu povo originário e suas culturas.
Com a emergência no campo da arte contemporânea de debates sociais como a discussão sobre identidade, que engloba temáticas como o gênero e a etnia, e a possibilidade de inserção no circuito de artistas de origens diversas, vimos nos últimos anos repetidamente um movimento similar de apropriação, ressignificação e criação de trabalhos críticos às obras da Brasiliana. A esse movimento, o crítico e curador Moacir dos Anjos chamou “Descolonizar a Brasiliana” que trata-se de
“Uma estratégia criativa que artistas brasileiros diversos têm, cada qual a seu modo, explorado: escavar, em imagens de séculos passados que tematizam o Brasil, índices das violências formadoras e constitutivas do País. E que, transformadas, até hoje persistem. Violências contra os povos indígenas que habitavam as terras invadidas por europeus e contra pessoas negras trazidas à força da África e escravizadas no Brasil.”
Esses artistas utilizam em sua maioria obras criadas a partir da perspectiva eurocêntrica para ressaltar seus vícios de criação relacionados à própria condição estrangeira de artistas como Albert Eckout, Auguste Sthal, Frans Post, Jean-Baptiste Debret, Johan Moritz Rugendas, José Christiano Jr., Nicolas-Antoine Taunay, Theodore de Bry, Thomas Ender e Victor Frond.
Em 2022, foi apresentada a mostra “Necrobrasiliana”, uma parceria entre a Fundação Joaquim Nabuco (PE) e o Museu Paranaense (PR). Com curadoria de Moacir dos Anjos, foram reunidas obras de 12 artistas contemporâneos que reinterpretaram e reinventaram um conjunto iconográfico e documental composto por produções criadas entre os séculos XVI e XIX. Fazem parte da mostra coletiva obras dos artistas Ana Lira, Dalton Paula, Denilson Baniwa, Gê Viana, Jaime Lauriano, Rosana Paulino, Rosângela Rennó, Sidney Amaral, Tiago Sant’Ana, Thiago Martins de Melo, Yhuri Cruz e Zózimo Bulbul.
Em “Atualização traumática de Debret”, série de colagens digitais de Gê Viana, a artista reivindica a necessidade de revisão de imagens tão fortemente arraigadas na memória coletiva devido à reprodução acrítica em livros didáticos, exposições e arquivos. Na obra “Levantamento do Mastro. Festa do Divino Espírito Santo” (2020, abaixo), a obra “Aplicação do castigo do açoite” (c.1824, abaixo) de Debret é digitalmente modificada a fim de transformar uma cena de castigo corporal em um registro alegre de uma festa religiosa: o pelourinho torna-se um mastro com flores e frutas, o açoitador desaparece, os castigados são libertados e entre o público não se vêem mais os grilhões que os prendiam.
Outro relevante artista da cena atual na mostra é Denilson Baniwa, que interviu em ilustrações presentes na publicação “Grandes Expedições à Amazônia Brasileira” em um exercício definido pelo artistas como rasura, na medida em que oculta e acrescenta informações às obras. Em “O antropólogo moderno já nasceu antigo” (2019, abaixo) subverte a relação entre observador e observado ao colocar o antropólogo de Debret como objeto de análise de um indígena, acrescentado pelo artista no canto direito da imagem. Outras intervenções realizadas são, por exemplo, inserir nas prateleiras, ao lado de livros, objetos indígenas. Dessa forma, o artista equipara simbolicamente as formas de conhecimento das duas culturas.
Antes disso, Adriana Varejão, desde o final da década de 1980, enfocou sua produção em obras que subverteram as narrativas manifestadas pela arte barroca colonial, especialmente na azulejaria. Na série “Proposta para uma catequese”, produzida entre 1996 e 2005, a artista apropria-se de imagens definidas como “figuras de convite”, também chamadas de figuras de respeito, figuras de receber ou figuras de cortesia, eram imagens em azulejos de lacaios e guerreiros simpáticos que davam as boas-vindas àqueles que chegavam em palácios, pátios e jardins portugueses – e, posteriormente, brasileiros – e por vezes indicavam a direção a seguir com um gesto das mãos ou o apontar dos dedos.
Em “Figura de convite I” (1997, abaixo), a artista apropriou-se de gravuras de Theodor de Bry que, inspirado nos relatos de viagem de Hans Staden e Jean de Léry, ilustrou livros acerca das Américas no final do século XVI. Seus livros foram bastante difundidos à época e impactaram fortemente o imaginário europeu acerca do novo continente devido, principalmente, aos relatos ilustrados sobre os indígenas canibais. Varejão acrescente à mão da imagem original uma cabeça decepada que representa a própria artista, oferecendo-se como parte do banquete antropofágico junto aos pedaços expostos nos azulejos ao fundo da representação.
Com esses exemplos, nosso objetivo era demonstrar que a descolonização enquanto estratégia de criação artística não está limitada a artistas afro-indígenas, mas coloca-se como possibilidade de reflexão sobre representações iconográficas de imensa importância histórica e material para a formação da sociedade brasileira.